«Pleno emprego é fictício»
O pleno emprego em Portugal é fictício, porque o Estado e o Governo continuam a absorver pessoas por causa do aumento da burocracia, da falta de formação das força de trabalho da administração pública e da política de contratação indiscriminada. Quem o afirma é Belmiro de Azevedo, presidente do Grupo Sonae, em entrevista ao Expresso. Cáustico e pragmático quanto baste, o conhecido empresário português também não poupa críticas à ineficácia do ministério da Educação, à falta de visão e isolamento dos empresários e ao corporativismo universitário, «difícil de perceber, porque os professores deviam ser pessoas de inteligência superior».
Belmiro de Azevedo com Ruben Eiras
Versão adaptada do Expresso
Portugal é um país de doutores desempregados?
BELMIRO DE AZEVEDO - O significado da palavra "doutor" em Portugal foi evoluindo até se tornar numa espécie de bilhete de entrada no mercado de trabalho a preço fixo. Quando tinha 17 anos de idade, na Faculdade de Ciências, os contínuos já chamavam "doutores" aos alunos do primeiro ano. Assim, diferente de outros países, onde pessoas que são realmente "doutores" não são designadas por tal, aqui em Portugal há pessoas chamadas por esse título, independentemente da sua capacidade intelectual e competência. Ou seja, existem e continuam existir muitas pessoas que entram na universidade sem a vontade de trabalhar na área que escolheram, nem com a competência necessária para tal. Por isso, há excesso de formação em certas áreas, o que acaba, em parte, por desvalorizar a licenciatura.
Como é que avalia a qualidade do ensino em Portugal?
B.A. - Por um lado, o ensino está mais diverso e ensinam-se coisas mais próximas do mercado. Mas há menos rigor, não só da parte dos alunos, como também e ainda mais da parte do professores. Em suma, o produto final é pior.
Como é que o ensino chegou a esse ponto?
B.A. - Não foi uma coisa que aconteceu de um dia para outro. O 25 de Abril teve muita influência neste processo, porque muitos bons professores foram eliminados por serem acusados de colaboracionistas com o antigo regime. Para o lugar deles entraram incompetentes com alguns ideais radicais e o título era atribuído mais pelo seu grau de radicalismo do que pela sua competência. O resultado foi um certo abandalhamento do conceito de disciplina e dos valores na universidade, o que deu início a um período de excesso de liberdade e de auto-interpretação corrente de quem faz o quê, culminando na situação corrente de termos maus alunos e maus professores. Maus professores que dizem que ganham pouco e por isso têm que ter "multi-emprego", e maus alunos que passam a vida a protestar na ruas por causa das propinas serem caras. Raramente vêem se alunos a exigirem uma universidade melhor, um currículo melhor e professores melhores. E raramente se vêem professores a invocarem mais salário para ensinarem num só local de trabalho.
Acha que ainda existe um corporativismo forte nas universidades, que emperra a ligação ao mundo empresarial?
B.A. - Sim. O corporativismo é um mal geral da sociedade portuguesa, que vem do antigo regime e que infelizmente, o 25 de Abril não eliminou. O corporativismo luta por causas sem conteúdo. Os sindicatos, por exemplo, exigem mais salário sem quererem saber se há criação de riqueza ou não. Os patrões querem incentivos fiscais independentemente se têm estratégia ou se criam produtos com interesse. Os jornalistas, também, defendem valores determinados de uma maneira corporativa: têm direito de dizer mal de quem seja e não aceitam críticas de fora. Mas o corporativismo universitário é difícil de perceber, porque os académicos deviam ser pessoas de inteligência superior e assumir um posicionamento mais aberto. Mas como os professores universitários auferem hoje baixos vencimentos, isto obriga-os a uma carreira multifuncional, situação que os torna corporativos. Os bons professores não deviam ter limite de salário. É quase ridículo ver pessoas de grande craveira intelectual em manifestações, embora esta situação seja mais evidente em professores do ensino primário e secundário. Mas há sempre uma escapatória: um professor que é competente, sai da universidade pública, vai para o sector privado e protesta menos.
Quais as razões da sucessiva ineficácia das reformas do ministério da Educação?
B.A. - O ministério da Educação sempre foi um monstro dentro de outro monstro que é a administração pública. O ministério da Educação é o maior empregador nacional, deve possuir o maior teor de burocratas no sistema. Continua a gerir numa lógica de continuidade aquilo que existe, em vez de gerir numa lógica de base zero, por reformular o sistema por completo. Não têm existido verdadeiras reformas educativas. As reformas do sistema de ensino em Portugal têm-se centrado nas provas finais e de acesso e não nas questões de fundo, como o financiamento das estruturas - escola e universidade - e a alteração completa do sistema de remuneração dos professores. E quando esses temas afloram na comunicação social, desaparecem logo a seguir e fica tudo na mesma. E tem-se mais do mesmo.
Então qual a solução?
B.A. - Devia haver uma reforma que abrisse e descentralizasse o sistema de ensino. O ministério da educação devia ser um regulador, validador de currículos, a qualidade do exame e deixar o sistema funcionar, descentralizado. Já se está a fazer no secundário e no primário, mas no superior a evolução tem sido muito lenta. Devia-se centrar mais na gestão dos activos - infraestruturas, tecnologias de informação, bases de dados - e criar competitividade entre alunos e professores. É que nos mercados onde isto existe, as universidades não precisam de ser avaliadas, porque os bons alunos é que dão as notas, com o bom desempenho no mundo profissional. Os bons alunos procuram bons professores e os professores só ficam satisfeitos com bons alunos. Hoje temos um ciclo ao contrário: ao alunos querem ter o canudo depressa e os professores querem dar as aulas depressa. Por isso, nenhum é exigente. Quando dei aulas, fiquei espantado com professores que passam de uma universidade para a outra a dar a mesma matéria, como se fosse enlatado, o que é mau. Isso não dá criatividade e empreendorismo. Quando a aula é passada a debitar matéria de um livro ou de um artigo de jornal, e não se questiona os alunos ou se ensina coisas diferentes, se os professores não são criativos, os alunos não o vão ser. Não há dialéctica, criação de inquietação.
Porque é que as universidades são relutantes em aceitarem empresários na concepção dos currículos dos cursos?
B.A. - A pressão empresarial não é eficaz, porque a maioria dos empresários portugueses não são uma classe avançada, quando comparada com o resto do mundo desenvolvido. O tecido empresarial nacional ainda é um corpo fechado e pouco comunicativo. Por isso, o diálogo não é fácil. De um lado, temos o silo dos universitários e do outro, o silo dos empresários e não há bases comunicantes entre os dois sistemas: é raro ver um empresário tornar-se professor e vice-versa.
E as universidades privadas não têm contribuído para minorar essa falta de ligação ao mercado de trabalho?
B.A. - Muito pouco. Como as universidades privadas têm de concorrer com o ensino gratuito das universidades públicas, apostaram nos cursos de papel, lápis e borracha, porque o retorno do investimento é mais rápido. Não é preciso investir em grandes instalações, a qual é uma condição sine qua non para cursos de formação mais técnica, como engenharia e medicina, por exemplo. Essas é uma das razões do excesso de advogados, letrados, sociólogos e psicólogos. Só que as universidades privadas não tinham outra via.
No que diz respeito ao financiamento das universidades, que medida se deveria adoptar para aumentar a racionalização dos recursos?
B.A. - Sou a favor do financiamento do aluno - através de um cheque educação, por exemplo - do que a instituição universitária. Isso é financiar um peso morto, deitar dinheiro para um buraco, sem saber depois como ele é gerido.
Mas as universidades dispõem de autonomia na gestão...
B.A. - As universidades têm autonomia para gerir a despesa - que pouco tem a ver com investimento -, mas não possuem autonomia para gerir as receitas, porque quem o faz é o ministério das Finanças através da tributação. Ou seja, as universidades continuam centralizadas e dependentes do ministério das Finanças e da Educação.
Outra grande lacuna do mercado de trabalho nacional é a carência de profissionais de cariz técnico. Como aumentar a atractibilidade destes cursos?
B.A. - Essa é a pior de todas as situações. Em Portugal, depois do 25 de Abril, as escolas técnicas foram consideradas como discriminatórias do ponto de vista social, ofensivas da dignidade humana, por ser considerado um ensino dirigido às classes mais baixas. Toda a gente queria ser doutor, enquanto muitos poderiam, por exemplo, ser excelentes serralheiros e electricistas. Os espanhóis, ao contrário de nós, mantiveram as escolas profissionais, que são de necessidade evidente. Por exemplo, em Portugal, não há técnicos de saúde e são médicos que estão a ocupar esses postos. Em Espanha, há uma abundância de enfermeiros técnicos. Estou a pensar em fazer uma clínica privada e vou certamente recrutar técnicos espanhóis e brasileiros.
Porque é que os cursos de engenharia não preencheram a maioria das funções técnicas em falta?
B.A. - Porque os cursos de engenharia, por serem caros, não forneceram os profissionais técnicos em quantidade suficiente, sobretudo através dos engenheiros com grau de licenciatura. Teria sido mais rentável para eles, para o país e para as empresas se possuíssem uma qualificação intermédia, do que desempenharem funções de nível inferior à sua formação. No entanto, no passado, já os engenheiros técnicos reivindicavam a atribuição do grau superior. É um problema de cultura do título de "doutor". Mas não é preciso um grau académico para ter sucesso quer na vida empresarial e até na vida política. Temos muitos exemplos de políticos na praça que não têm curso nenhum. E abundam muitos jovens que se inscrevem nos partidos, porque não têm emprego. Por isso é que o parlamento fica cheio de pessoas que nunca trabalharam.
Já que fala de política, como comenta a recente declaração do primeiro-ministro António Guterres, ao afirmar que os portugueses são pouco profissionais?
B.A. - Foi o filho dele que disse isso, não foi?
Exactamente. O filho foi aos Estados Unidos e veio de lá impressionado com o que viu.
B.A. - Então não percebo como é que o filho dele disse isso. É por ser jovem. Não o conheço e não sei em que baseou essa afirmação. Mas aparentemente foi validada pelo pai. Como Guterres é um profissional da política, se calhar utilizou essa afirmação para o sector que ele conhece melhor, que é o dos políticos (risos).
Passemos à política de trabalho. Existe mesmo pleno emprego?
B.A. - O grave é o pleno emprego rígido e fictício, porque a economia consome apenas o número de empregos que são necessários na realidade.
Quer dizer com isso que o Estado continua a absorver pessoas, para evitar que o Governo enfrente os custos sociais do desemprego?
B.A. - A burocracia aumentou tremendamente e o Estado, independentemente dos governos que o administrem, não é muito agressivo a auto-reformar-se. Os governos, de facto, têm uma grande propensão para consumir pessoas, como assessores e ajudantes. Dado que o problema da produtividade não é atacado, há talvez alguma razão em contratar mais pessoas, como em situações de picos de trabalho. Mas isso acontece porque não se tomam as decisões de fundo de investir para modernizar, como as tecnologias de informação e melhorando o "caco" das pessoas que trabalham na administração pública. Isto tudo com a agravante das pessoas contratadas para uma tarefa criarem aderências ao sistema e ficarem como lapas que nunca mais saem.
Como avalia a política de formação dos últimos 15 anos?
B.A. - O problema é saber como o dinheiro para a formação foi gasto. E não se sabe. Criou-se uma indústria cujo objectivo era captar os fundos europeus, sem grande preocupação de formar pessoas para o mercado de trabalho. Caso contrário, tinham-se formado mais electricistas e técnicos de vária ordem. O fundamental era criar um curso para ter direito a uma receita, independentemente da qualidade daquilo que se ensinava e da real formação para o mundo do trabalho. O resultado é que hoje as associações patronais e uma certa classe de empresários vivem à custa dos subsídios do Fundo Social Europeu. Isto esteve longe de ser um investimento cuja produtividade seja recomendável.
Porque é que os empresários continuam a ver a formação como um custo?
B.A. - Nós aqui não vemos como um custo. Temos o problema ao contrário. No caso concreto da Sonae, há uma recomendação para as pessoas investirem uma determinada parcela da sua massa salarial na sua formação. Mas como muitas vezes as pessoas andam muito atarefadas, ainda não arrumaram nas suas cabeças que têm de dedicar parte do seu tempo para fazer formação, escolhida por si próprias. Nós vemos a formação como um investimento altamente reprodutivo e não como um desperdício de tempo.
Mas a maioria do tecido empresarial não pensa assim...
B.A. - Não sei, porque tenho uma vida muito intensificada naquilo que estou fazer. E como também sou um bocado crítico ao funcionamento das associações patronais, não tenho participado nestas. Tenho uma leitura um bocado distante dessa realidade. É uma das críticas que se pode fazer ao meu comportamento.
Mesmo assim, qual é a sua opinião sobre o novo acordo de concertação social, que consagra o direito a horas de formação aos trabalhadores?
B.A. - O problema é saber se essa formação vai existir, se é boa formação ou se lutam apenas por uma reivindicação. Nem sei qual é a percentagem da massa salarial, mas presumo que seja pequena. O problema é se essa formação está disponível e se as pessoas a querem ter. É uma questão de atitude. Tenho as minhas dúvidas se as pessoas querem as horas de formação para essa finalidade. Por exemplo, a reivindicação de 35 horas em vez de 40 devia ter algo mais substancial. Isso deverá ser possível com a criação de organização e condições de trabalho que permitam produzir mais e melhor em menos tempo. Não é trabalhar 35 horas para ganhar mais cinco horas extraordinárias.
A aula de Belmiro |
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Depois da entrevista, Belmiro de Azevedo interviu na sessão de apresentação do Grupo Sonae aos estagiários inseridos no programa "Contacto 2001". Das 2.217 candidaturas recebidas, só 125 foram seleccionadas, entre cursos de engenharia, economia, gestão e ciências sociais e humanas. Os jovens candidatos ouviram com atenção os conselhos sobre gestão da carreira do maior empresário do país, o qual também se sujeitou a uma sessão de perguntas. Eis alguns dos ensinamentos para o sucesso profissional do "professor" Belmiro: |
O magnífico reitor dos negócios |
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A formação e o conhecimento são para Belmiro de Azevedo como pão para a boca. «O maior investimento que fiz na minha vida foi quando aos 17 anos decidi ser empreendedor e comecei a dar explicações para financiar o meu curso. Ginasticou-me 'caco' e o retorno do investimento é infinito. Por isso, a formação é o melhor investimento que qualquer pessoa pode fazer», afirma convictamente. Com efeito, o carismático presidente do Grupo Sonae considera-se como um reitor de uma escola de negócios, que transmite experiência profissional com valor económico. De facto, quando encontra um livro que acha importante para a formação e desenvolvimento da sua força de trabalho, não hesita e compra vários exemplares que distribui pelos quadros de topo. Tem horror à mediocridade e pugna pela diversidade de bases educacionais dentro da empresa. «Na diversidade é que está o ganho. Mas só entra na Sonae as pessoas que querem ter sucesso, mas não a qualquer preço. A maior valência é sempre a competência», refere. E não tem dúvidas quanto ao segredo do sucesso da Sonae: «É o somatório do esforço, rigor e criatividade de todas as pessoas que aqui trabalham». Belmiro não consegue ficar parado e é uma "pedra rolante" no mundo dos negócios. «Sempre gostei de fazer coisas diferentes. Portanto, quando uma área está bem consolidada e o método de trabalho está bom, vou pregar para outra freguesia», revela. Outra das raízes do sucesso da Sonae é a capacidade de detectar oportunidades de negócio e de decisão rápida. «É verdade que às vezes erramos e estampamo-nos contra a parede. Mas não há nada que com um bocado de tinta e uma ida ao bate-chapas não resolva. É melhor errar do que não decidir. Pelo menos, aprende-se», remata Belmiro de Azevedo. |
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